LETRA DE CANÇÃO É OU NÃO POESIA? – Abayomi Academy
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LETRA DE CANÇÃO É OU NÃO POESIA?

Por Wagner Azevedo Pereira

O objetivo desse artigo é desenvolver considerações sobre o gênero textual letra de canção a metodologia da abordagem desse texto a ser utilizado em sala de aula na recepção e educação da disciplina Língua Portuguesa. Apresentar fundamentações teóricas e práticas da distinção entre as expressões gênero textual, tipo textual e domínio discursivo e a visão que postulam alguns compositores e escritores acerca da classificação da letra de música se é ou não poesia.  Isso ocorre pelo fato de a MPB (Música Popular Brasileira) ser riquíssima em estilo e de complexa definição teórica no âmbito literário. 

Introdução 

              A Língua Portuguesa não deve ser mais ensinada sem levar em consideração, principalmente, os usos e as funções sociais dos textos que circulam na sociedade. A escola precisa, em todas as séries, principalmente no Ensino Médio, priorizar a utilização de textos conforme eles se apresentam em nossa sociedade letrada. Dessa maneira, as práticas de leitura e escrita de textos poderão atingir objetivos, ganhar sentidos práticos, e não apenas fazer com que o educador as transforme em situações voltadas, única e exclusivamente, para a avaliação e correção simplesmente. 

             Essas assertivas são fortalecidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, 1° e 2° ciclos:

A questão do ensino da literatura ou leitura literária envolve, portanto, esse exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita. Com isto, é possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tratá-los como expedientes para servir ao ensino das boas maneiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos gramaticais, das receitas desgastadas do ‘prazer do texto’ etc. Postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as articularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias (MEC, 1997, pp. 37-38)

              Nas minhas pesquisas até o presente momento sobre letras de canção como representação poética encontrei poucos trabalhos sobre o assunto. Embora a expressividade desse gênero apareça em várias culturas do mundo, há ausência de pesquisas direcionada a essa temática. 

              As palavras são poderosos instrumentos dos atos da comunicação humana e elas transformam a própria prática da linguagem. Embora nem sempre percebamos, fazemos uso dela em todas as situações cotidianas, sociais, políticas, culturais etc. 

              Nas canções da Música Popular Brasileira (doravante MPB) o texto, na maioria das vezes, acomoda-se à melodia para atingir um efeito estético (GROSSI apud CARVALHO & MENDONÇA, 2006, p. 137). Vários compositores, como Gilberto Gil, Vinícius de Morais, Tom Jobim e outros promoveram uma revolução estética na música, pois passaram a entender a relação palavra e som, não apenas do ponto de vista melódico, mas também do ponto de vista de todo um conjunto: melodia, ritmo e harmonia. 

1 – A Música 

              Música (musiké, “a arte das musas”, já trazia a simbiose melodia e verso — além da dança a das artes visuais) e poesia estiveram indissociáveis desde a antiguidade na Grécia, antes mesmo dos registros escritos, como mostram os estudos de antropologia ao longo da História da Humanidade em que se pode ver a imagem do aedo empunhando um instrumento de cordas, a phorminx (um tipo de lira também denominada cítara). O aedo constitui o arquétipo tanto do artista quanto da própria arte, por um lado; e consagra também o lugar da oralidade e da palavra cantada numa época em que a audição era prestigiada, por outro.  Os poetas eram as primícias, os detentores dos poderes de uma sonoridade melogônica e cosmopoética helenista. E as Musas eram os seus avatares. 

              Acreditava-se que cabia à música a função de memorizar as criações poéticas e literárias, das quais se serviu Homero. Horácio escreveu em sua Arte Poética que “a poesia é uma pintura que fala; e a pintura um poema mudo”. Esses poetas, cantadores ambulantes, eram conhecidos como rapsodos — bardos, entre os celtas; trovadores, na Idade Média e biva-hôshi no Japão (FRÉDÉRIC, 2008, p. 126) e se acompanhavam com a lira de quatro cordas. Eles louvavam a memória dos deuses, dos heróis nacionais, dos feitos históricos (relatos épicos) e apresentavam-se de maneira histriônica. Essa ligação que se perdeu depois da era cristã será regatada pelos trovadores medievais.  

              O objeto mais antigo de que se tem notícia, com relação à poesia em seu estado embrionário, é um documento gravado em hieróglifos na pirâmide do rei Unas, do período menfítico. (COMBARIEU, 1909, pp. 69-73). 

Um outro elemento artístico que estava intrínseco à poesia desde tempos imemoriais e em várias culturas do planeta era a dança. Ela contribuía para a organização rítmica dos versos e estava ligada a práticas rituais (SPINA, 2002, p. 37).

A união das três artes — Poesia, Música e Dança — era utilizada nas atividades religiosas da sociedade. Elas eram “processos de reforço mágico, ligados à ‘onipotência das ideias’ e ao narcisismo” (RAMOS, 1940, p. 396).

Os poetas do período medieval, conhecidos como trovadores e menestréis, transmitiram suas artes lendárias e históricas pela tradição oral. Foi através desse processo de trabalhar a poesia cantada que eles criaram as cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio. 

              Os jograis, também um gênero de literatura oral (designada pelos índios brasileiros como “poranduba”), sem os compromissos morais dos textos religiosos, destinavam-se ao público iletrado de vilões, burgueses ou nobres. Com as temáticas baseadas na vida e interesse desse público, os jograis consistiam, sobretudo, em poemas e narrativas versificadas. E será daí que surgirão as literaturas românicas, os gêneros modernos de ficção como o poema lírico e o romance (ZUMTHOR, 1993, cap. 3). 

              O advento da imprensa tornará possível a conservação da palavra sem o auxílio da música. Principalmente após a revolução no campo da leitura e dos estudos devido à profusão de cópias. Além do mais, a música também pôde ser mais difundida por meio da partitura.

              No final do século XIX, em 1877, Thomas Alva Edison inventa o fonógrafo com o objetivo inicial de ajudar os cegos e preservar a língua. No entanto, contribuiu para melhor divulgação da música cantada. 

              A música popular moderna remonta há aproximadamente quase dois séculos. O poeta e violeiro carioca Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) é considerado o primeiro compositor popular brasileiro, segundo Tinhorão (s/d, pp. 12-13). 

               A relação letra e música na MPB gerará intermináveis discussões se a letra é ou não poesia. E a revista de literatura Livro Aberto, edição de março-abril de 1998, abre uma importante discussão através de entrevistas e artigos sobre o assunto. Em seguida, a revista Cult, de agosto de 2001, do mesmo segmento, fará o mesmo. Essa temática gerou também um vídeo: a Palavra (En)cantada, continuando a polêmica até os dias atuais.

               O editorial da Livro Aberto, intitulado “Como é MPB… como é poesia” lança mão de um poema de Augusto de Campos, “Como é Torquato”, escrita para o compositor tropicalista Torquato Neto, que expõe essa discussão. (CAMPOS, 1993, p. 309).

               Augusto dos Anjos nos mostra que este texto não é nem poesia, nem prosa, mas sim o coloca na particularidade das letras de canção. Ela, não necessitando da plasticidade do texto escrito, transmitiria sua mensagem por outras instâncias, ou seja, sua força residiria na forma como é cantada. O músico Luiz Tatit denomina esse processo “tensividade da canção” (apud Cadernos de Estudos, 1990).

               O poeta Antônio Cícero diz que a poesia cantada no Brasil recebe o nome de “letra de música”, indicando que “não se trata de poesia ágrafa e a-histórica, mas de poesia extremamente mediatizada — em primeiro lugar, pela escrita e, em segundo, por uma música também historicizada” (CÍCERO, 1998, pág. 8).   

2 – A Canção

              A canção genericamente designa toda composição poética destinada ao canto. Provavelmente se relaciona com a “cansó” provençal, elaborada pelo trovador medieval. A origem da canção é popular, folclórica. Iniciou-se com as bailadas (baladas, canzoni da ballo, em italiano) e evoluiu para a composição jogralesca. 

3 – A problemática de se classificar a Letra de Canção

              No documentário de Helena Solberg (Palavra [En]cantada, 2008) há alguns depoimentos de cantores, compositores e poetas acerca da definição de canção e da discussão sobre se letra de canção é ou não poesia. Exporemos apenas o depoimento de alguns. 

              Adriana Calcanhotto é bem enfática ao afirmar: “… se a letra de canção é poema, poesia… a vida é muito curta e eu não tenho tempo pra [discutir] isso”; Paulo César Pinheiro pergunta: “Qual corrente literária, qual poeta de que geração, de que movimento, pode me afirmar que o Chico Buarque não é um poeta?” Já Chico Buarque não considera letra de canção poesia, chega mesmo a afirmar que não se considera poeta. Outras personalidades afirmam, alguns negam e há também quem fique dividido. 

             O poeta Thiago Melo põe a poesia num nível superior, não reconhecendo o estatuto da letra:

O perigo da palavra cantada é o seguinte: o poder da melodia é tão grande que ela pode sustentar palavras ocas, vazias ― letras ou verso, como tu queiras chamar ― que, quando colocadas no papel, sem o auxílio da melodia, não funcionam como poesia, tombam inertes (…) Temos hoje exceções, aqueles que nasceram poetas: o Caetano, o Gil e o Chico. Outro exemplo de poesia é “Rosa”, de Braguinha (p.11).              

               Péricles Cavalcante é contraditório, primeiro declara o valor poético de qualquer letra, depois...:

Acho que a questão é: em que medida um poema também é cantável? Na verdade, o que a gente chama de poesia na canção é um tipo de poesia que pode ser cantada, como se fazia na Grécia ou em Provença. (…) Por outro lado, há textos que parecem ‘incantáveis’, mas que se tornam poesias cantadas, dependendo da maneira como são cantados (p. 14).

 
               Já a revista Cult, nº 49, de agosto de 2001, teve sua edição dedicada quase integralmente a Caetano Veloso. Na capa, abaixo da foto do compositor, traz a frase “Caetano Veloso, o poeta da MPB”.

Wagner Azevedo Pereira nasceu em Nova Iguaçu/RJ – Brasil. Formou-se em Letras, com Pós-graduação (lato sensu) em Língua Portuguesa, cursa Direito, formações na Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Doutor Honoris Causa (OMDDH e APALA-RJ). Tem 36 livros publicados: 21 dicionários, 2 livros de contos, 1 de sonetos e 12 participações em antologias. Colaborou com o site E-Dicionário de Termos Literários (online) com seis verbetes inéditos: EUS, ERÓTEMA, PORANDUBA, PAI-JOÃO, ANÁBASE e CATÁBASE. É 2º Vice-Presidente do IICEM (Instituto Internacional Cultura em Movimento) e colunista da rádio Tropical AM 830, do RJ (www.tropicalam830.com), com o quadro O DICIONÁRIO ABERTO, todo 1º sábado de cada mês às 17 horas (horário de Brasília).